Um monge trapista fala sobre o Islam
O monge trapista Christian de Chergé, prior da Abadia de Nossa Senhora do Atlas, na Argélia, foi martirizado em 1996 por terroristas argelinos. Sempre encorajou e praticou o diálogo entre cristãos e muçulmanos, não somente nos níveis político, moral e dogmático, mas também no nível da mística e da espiritualidade. Distinguia claramente entre os muçulmanos tradicionais, maioria no país que adotou, e os radicais terroristas, que reconhecia como “caricaturas” do verdadeiro Islam. Pouco antes de morrer e já antevendo seu martírio, escreveu uma carta de adeus que ficou conhecida como seu “testamento espiritual”, na qual declara sua filosofia de vida. Esta é a palavra de um santo cristão (Chergé foi beatificado em 2018) falando, entre outras coisas, sobre o povo muçulmano que ele conhecia intimamente.
QUANDO SE PREVÊ UM A-DEUS – Testamento espiritual do monge trapista Christian de Chergé
Se acontecer um dia – e poderia acontecer a qualquer momento – de eu ser vítima do terrorismo que parece estar engolindo todos os estrangeiros que moram na Argélia, eu gostaria que minha comunidade, minha Igreja, minha família, se lembrassem de que minha vida já fora entregue a Deus e a esse país.
Que eles aceitem que não é estranha ao Mestre Único de toda vida uma partida tão brutal. Que rezem por mim: como seria eu digno de tal oferenda? Que saibam associar esta morte a tantas outras igualmente violentas, esquecidas na indiferença do anonimato.
Minha vida não vale mais que qualquer outra, e tampouco vale menos. Em todo caso, ela já não tem a inocência da infância. Já vivi o suficiente para reconhecer-me cúmplice do mal que parece, infelizmente, prevalecer no mundo, mesmo aquele que pode vir a me atingir cegamente.
Eu gostaria, chegado o momento, de estar suficientemente lúcido para pedir o perdão de Deus e de meus irmãos na humanidade, e, ao mesmo tempo, perdoar de todo coração a quem me terá atingido.
Não que eu deseje uma morte como essa; parece-me importante esclarecer isto. Não vejo, de fato, como poderia me alegrar com o fato de que esse povo que eu amo seja indiscriminadamente acusado de minha morte.
É muito caro o preço do que se pode chamar de a “graça do martírio” quando este é atribuído a um argelino, seja ele quem for, sobretudo se ele diz estar atuando de acordo com o que acredita ser o Islam.
Conheço muito bem o desprezo com o qual os argelinos são geralmente encarados. Conheço também as caricaturas do Islam encorajadas por um certo islamismo político. É muito fácil tranquilizar a própria consciência identificando aquele caminho religioso com o fanatismo dos extremistas.
A Argélia e o Islam, para mim, são outra coisa: são um corpo e uma alma. Creio que já deixei bem claro o que deles recebi, tendo reencontrado aqui com tanta frequência o reto fio condutor do Evangelho que aprendi no colo de minha mãe, minha primeiríssima Igreja. Isso aconteceu exatamente aqui, na Argélia, e no que diz respeito aos fiéis muçulmanos.
Está claro que minha morte parecerá dar razão àqueles que sumariamente me chamaram de ingênuo ou idealista: “Diga agora o que acha disto!” Mas eles devem saber que minha mais lancinante curiosidade será enfim satisfeita.
Eis que poderei, se Deus quiser, mergulhar meu olhar no olhar do Pai para contemplar com Ele seus filhos muçulmanos tal como Ele os vê, iluminados pela glória do Cristo, frutos de sua Paixão, investidos do dom do Espírito cuja alegria secreta será sempre estabelecer a comunhão e restabelecer a semelhança, brincando com as diferenças.
Por esta vida perdida, totalmente minha e totalmente deles, dou graças a Deus, que parece tê-la querido inteira para culminar nessa alegria, contra tudo e apesar de tudo.
Nesse OBRIGADO em que tudo é dito, agora, sobre minha vida, eu os incluo seguramente, amigos de ontem e de hoje, e vocês, amigos daqui, ao lado de minha mãe e meu pai, de minhas irmãs e irmãos e dos seus, o cêntuplo concedido como fora prometido!
E a você também, o amigo do último minuto, que não terá sabido o que fazia: sim, para você também eu quero esse OBRIGADO e esse “A-DEUS”, em Cujo rosto eu contemplo o seu.
E que possamos nos encontrar novamente, ladrões felizes, no paraíso, se for da vontade de Deus, nosso Pai, meu e seu.
AMÉM! Incha Allah!