O que é sufismo? A origem da espiritualidade islâmica

O sufismo, tal como a tradição islâmica de onde se origina, divide opiniões. Por um lado, muitos o veem como uma parte essencial da prática religiosa islâmica. Entre eles, inclusive, o sufismo é chamado de “o coração do Islam”. 

Por outro lado, há muçulmanos que o consideram como um conjunto de práticas completamente alheias à religião islâmica. Entre essas pessoas, predomina a opinião de que o sufismo é uma “inovação prejudicial” ao Islam.

Um terceiro grupo, de não-muçulmanos, também deseja separar o sufismo do Islam. Porém, por outro motivo.

Esses, apesar de sentirem afeição pelas práticas sufis, carregam preconceitos contra o Islam e os muçulmanos. Muitos deles, inclusive, tentam buscar justificativas para “serem sufis” sem “serem muçulmanos”. 

Nesse texto, exploraremos o que é sufismo e qual é o seu papel no Islam Tradicional. 

O que é sufismo? 

Há muitas origens sugeridas para a palavra tasawwuf, “sufismo” em árabe. Segundo uma das mais aceitas, ela vem de suf, que significa “lã”. O termo faz referência às roupas simples utilizadas por certos grupos de muçulmanos que se dedicavam às ciências da alma. 

Pesquisando rapidamente pela internet, você facilmente descobrirá que os muçulmanos devem crer em certas coisas – como, por exemplo, num Deus único –, praticar certos ritos e seguir um código moral. Além disso, descobrirá que eles devem seguir o Alcorão, seu livro sagrado, e a sunnah (a prática e os ensinamentos) do Profeta Muhammad, que a paz e as bênçãos de Deus estejam com ele. 

Há, porém, um detalhe que pode passar em branco para aqueles que não buscam conhecer mais a fundo a religião. O Alcorão deixa claro, em várias passagens, que muito mais do que uma mudança nos atos cotidianos, a religiosidade deve acarretar uma mudança positiva no coração: 

E pela alma e por Quem a formou! Então, lhe inspirou sua impiedade e sua piedade! Que será venturoso quem a purificar. E desventurado quem a corromper. (Alcorão 9:7-10)

“… no dia em que (os homens) forem ressuscitados. Dia em que de nada valerão bens ou filhos, salvo para quem comparecer ante Deus com um coração sincero. (Alcorão 26:87-89)

“Deus não vos recriminará por vossos juramentos involuntários; porém, responsabilizar-vos-á pelas intenções dos vossos corações. Sabei que Deus é Tolerante, Indulgentíssimo.” (Alcorão 2:225)

Essa tarefa nem sempre é fácil. Pelo contrário, quanto mais o crente se aprofunda na religião, mais dificuldades poderá encontrar. Afinal, são muitos os exemplos das pessoas que deixaram pecados mais “comuns” e exteriores, como a bebida, mas acabaram se perdendo na soberba e na falsa aparência religiosa. 

O sufismo nada mais é do que o esforço para purificar a alma de traços condenáveis, como a inveja, o rancor e a ostentação – seja essa ostentação material ou religiosa. 

Por isso, o sufismo não pode ser entendido como uma seita ou um grupo de muçulmanos, mas como uma ciência dentro do Islam. Essa disciplina, um ramo da árvore das ciências islâmicas, sistematiza as práticas de purificação da alma. O objetivo é facilitar o caminho para as pessoas se voltarem para Allah e deixarem para trás o ego

O tasawwuf, o estudo das práticas espirituais, portanto, se relaciona com as outras ciências da religião de forma indispensável. Vamos expandir um pouco mais o conceito para entender melhor como o sufismo complementa os outros aspectos da religião. 

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As três dimensões da religião

Os princípios fundamentais da religião islâmica estão ilustrados na “narração de Gabriel”. Segundo a história, o Profeta Muhammad (que a paz de Deus esteja com ele) estava sentado com seus companheiros sobre uma plataforma na entrada de Medina quando um homem desconhecido chegou. 

Esse homem não apresentava sinais de ter chegado de viagem, no entanto, ninguém o conhecia. Ele se sentou na frente do Profeta e começou a fazer perguntas, a primeira das quais foi: “O que é o Islam (a submissão/entrega)?” O Profeta respondeu: “Declarar que não há deus exceto Allah e que Muhammad é o mensageiro de Allah, fazer a oração, dar a esmola obrigatória, jejuar no Ramadan e fazer a peregrina a Meca, se conseguires.”

Então, ele perguntou: “O que é o Iman (a fé)?” O Profeta respondeu: “Acreditar em Deus, em Seus anjos, em Seus livros, em Seus mensageiros, no dia do juízo e no decreto, tanto o bom quanto o mau.” 

Então, ele perguntou: “O que é o Ihsan (a excelência)?”. O Profeta respondeu: “Adorar a Allah como se tu o visses, pois, se tu não O vês, Ele certamente te vê.” 

Depois de fazer mais algumas perguntas, o homem disse “Você falou a verdade” e saiu da mesma forma misteriosa como tinha chegado. O Profeta então perguntou a seus companheiros se sabiam quem era aquele homem. Ao receber uma resposta negativa, revelou que era o arcanjo Gabriel, que havia vindo ensiná-los sobre sua religião.

Essa narração é usada para exemplificar as bases da religião islâmica e mostrar como ela possui três dimensões: o “islam”, as ações (feitas com o corpo); o “imam”, que são as crenças do coração; e o “ihsan”, que se refere à excelência espiritual. Entender essas três dimensões é essencial para compreender o papel do sufismo na religião islâmica.

A importância do estudo das ciências internas

Como foi dito, a religião não se limita a uma disciplina diária ou a um código moral. O livro Ser Muçulmano, de Asad Tarsin, deixa claro que as três dimensões da religião (prática, crença e espiritualidade) se complementam, facilitando o caminho para Deus. 

Sem qualquer uma delas, a religião ficaria incompleta. Por exemplo, é improvável que o ser humano purifique o coração fazendo tudo o que deseja, sem o apoio de uma disciplina. Pelo contrário, ele ficará ainda mais envolvido nos desejos de seu ego. 

Por outro lado, a religião sem crenças apoiadas na razão e na lógica se torna somente uma superstição. E, por fim, negligenciar o aperfeiçoamento espiritual pode levar a uma religião rígida e legalista, levando os crentes ao fanatismo e ao “burnout” religioso. 

Por isso, enquanto a ciência islâmica chamada fiqh (jurisprudência) estuda a prática religiosa e a ciência da ‘aqida (crença) estuda os argumentos e a lógica da fé, o tasawwuf (ou sufismo) visa sistematizar as práticas de purificação do coração. E, com isso, facilitar a adoração sincera a Deus. 

“Quem estudar jurisprudência e não estudar o sufismo se corromperá; quem estudar o sufismo e não estudar jurisprudência se tornará um herege; e quem combinar os dois atingirá a verdade.” (Imam Malik, fundador da escola malikita de jurisprudência)

Qual é a origem do sufismo?

A palavra tasawwuf não era conhecida na primeira comunidade islâmica, mas a realidade designada por esse termo já existia na época, pois os companheiros do Profeta (que a paz esteja com ele), mais que quaisquer outros muçulmanos, buscavam a perfeição espiritual e a proximidade com Deus.

As práticas de purificação e elevação interior eram comuns entre eles e incluíam a adoração a Deus, o desdém pelos ornamentos do mundo e o retiro espiritual. No entanto, com o passar do tempo, a expansão do Islam e o aumento do envolvimento dos muçulmanos em questões mundanas, essas práticas foram sendo deixadas de lado pela maior parte da comunidade. 

Foi então que, segundo o historiador Ibn Khaldun, o tasawwuf enquanto ramo das ciências sagradas se originou para facilitar o estudo sistemático da purificação interior. Ele nada mais é do que uma forma de preservar as práticas espirituais dos primeiros muçulmanos, que, em pleno deserto da Arábia, buscavam purificar suas almas para adorar a Deus com sinceridade.

Isso significa que o sufi não é aquele que dança, canta ou se veste de certa maneira, mas, sim, o sufi é aquele que possui uma preocupação grande com a sinceridade de sua adoração a Allah e com o estado de seu coração

O sufismo é uma inovação prejudicial?

Nas mesquitas brasileiras, encontramos muitos muçulmanos desafetos do sufismo. De acordo com eles, ele seria uma “inovação” que importa práticas estrangeiras à nossa religião. 

De forma irônica, nas prateleiras desses muçulmanos encontram-se os dois únicos livros de hadith (ou narrações sobre a vida e as palavras do Profeta, que a paz esteja com ele) traduzidos para o português: Os 40 Hadiths e O Jardim dos Virtuosos. Ambos foram escritos pelo Imam Yahya An-Nawawi, que, além de grande mestre da escola de jurisprudência shafi’ita (em outras palavras, um profundo conhecedor do que é permitido e proibido no Islam), era um sufi famoso. 

Na realidade, se fossemos descartar as obras de todos os sufis, perderíamos cerca de 75% de todas as obras de eruditos muçulmanos que fizeram contribuições indispensáveis para a preservação da religião. Uma vez que eles compreendiam que a sinceridade espiritual era necessária para uma prática correta da religiosidade, eles se apoiavam na ciência do sufismo para atingir isso. 

A ideia, então, de que o sufismo seria algo alheio à tradição islâmica, só pode vir da ignorância da história e dos mandamentos da nossa religião. Afinal, da mesma maneira que não existia “sufismo” nos primórdios do Islam, também não havia mesquitas com tapetes e ar condicionado, nem livros sobre crença, escolas de jurisprudência ou traduções comentadas do Alcorão. Todas essas coisas, apesar de serem “inovações”, não são em nada contrárias à religião e surgiram somente como uma forma de facilitar a prática e o estudo do Islam. 

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